José Policarpo Junior é Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco; lotado no Departamento de Fundamentos Sócio-Filosóficos da Educação. É licenciado em História (1990) e mestre em Educação (1994) pela Universidade Federal de Pernambuco, e doutor em História e Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Foi pesquisador visitante do Centro de Pesquisas em Prevenção da Universidade do Estado da Pennsylvania (PENN-State) – EUA, em 2007. Atua na área de Educação, com ênfase no tema da Formação Humana, em seus aspectos teóricos, práticos e vivenciais.
Conforme afirmado na coluna anterior, só podemos aludir à ideia de formação humana caso tenhamos o pressuposto de que haja algum fenômeno cuja natureza possamos identificar como próprio do humano. Se não for possível realizar tal identificação, não seremos capazes de apresentar em toda sua pertinência e consequência aquilo em que consiste a formação do humano.
Nesse terreno, a tarefa a ser empreendida se torna mais difícil não apenas pelos desafios epistemológicos inerentes à mesma, mas porque o próprio objeto da reflexão, ou mesmo a sua simples admissibilidade no âmbito da consideração racional são rotulados imediatamente como assunto metafísico pelo campo acadêmico em sua configuração atual.
Desde que Andrônico de Rodes, ao organizar no século I a.C. todas as obras de Aristóteles então disponíveis, classificou a parte daquelas destinadas ao estudo da ética, da alma humana e do ser último do mundo, como as obras além da physis (metafísicas), ou seja, que tratavam de aspectos que transcendiam a realidade física, que o pensar filosófico passou a adotar tal classificação, mas ainda sem liquidar com a pretensa validade do seu conhecimento, nem muito menos com sua reputação. Apenas no século XVIII, com o filósofo Immanuel Kant e seu criticismo filosófico, veio definitivamente a se abalarem as pretensões da razão ao conhecimento metafísico, sem deixar de reconhecer, porém, sua finalidade e necessidade para a vida moral e prática. Ainda depois de Kant, foram diversas as tentativas de salvar as pretensões metafísicas da razão, como na filosofia de Hegel ou no movimento romântico alemão. De toda forma, a época moderna terminou por estruturar uma visão hegemônica da metafísica como algo sem fundamento ou isenta de base reconhecível e, no limite, não portadora de dignidade sequer de tornar-se objeto de reflexão no campo acadêmico.
Ora, uma vez que careceriam de bases seguras para seu exame racional, fenômenos relativos à fundamentação da ética, à constituição fundamental do ser humano e à validade de suas escolhas, à natureza última do mundo, da matéria e do espírito, seriam todos assuntos metafísicos sobre os quais não se poderia afirmar nada de fundamental ou universalmente aceito, mas, no máximo, poder-se-iam elaborar discursos ou narrativas que seriam mais ou menos apropriadas ao clima geral do âmbito intelectual que se propusesse a ouvi-los.
Diante de tal quadro de coisas, estamos em uma situação em que a simples tentativa de apreender aquilo que constitui a natureza do ser do homem, apesar de ser apenas tentativa, já seria considerada empreendimento condenado ao fracasso. A despeito da grande aceitação dessa tese, não reconhecemos na mesma suficiente fundamentação que a eximisse de maior questionamento.
A primeira objeção que poderíamos fazer em relação ao argumento da classificação de algum fenômeno como metafísico seria o referente ao próprio sentido ou critério daquilo que pode ou não ser considerado metafísico. É possível estabelecer claramente esta delimitação? Haverá a mesma de separar, para além de toda a dúvida, os fenômenos que seriam considerados ante dos meta-físicos? Temos fortes razões para suspeitar que essa definição não possa se afirmar cristalinamente, ou pelo menos não possa se afirmar no modo majoritário pelo qual tal entendimento é hoje aceito no campo acadêmico.
É imperioso reconhecer que estamos longe de ser os primeiros a questionar a natureza problemática de tal classificação. Hannah Arendt[i], na introdução de sua obra O Pensar, afirmou que a separação entre os supostos domínios físico e metafísico termina por obnubilar a clareza sobre o que viria a constituir a natureza do próprio domínio físico. Desse modo, parafraseando Hegel, afirmou ela que “o isto dos sentidos” é definitivamente inapreensível, de sorte que aquilo mesmo que se experimenta em um banal ato de sensação não é algo que possa ser claramente definido. De fato, em que consistiria a natureza intrínseca da suavidade, da aspereza, do gosto do amargo, do olor agradável, da harmonia visual, etc.? São o “quê” de tais simples experiências sensoriais apreensíveis fisicamente? Sequer é possível transmitir o sentido de tais experiências àqueles que não os tenham experimentado. Uma tristeza, por exemplo, é algo físico ou metafísico? Não há dúvida de que é possível identificarmos diversas experiências nas quais podemos apontar causas físicas e não físicas para o mesmo sentimento de tristeza.
Com este argumento, não estamos querendo negar a possibilidade de se distinguirem com clareza aproximada os fenômenos físicos e aqueles que não são físicos, ou não são apenas físicos. O que estamos apontando agora é apenas a evidência do caráter necessariamente precário dessa linha delimitadora, até porque o conhecimento último daquilo que venhamos a chamar de natureza física não está ao nosso alcance. Nesse sentido, não seria despropositado pensar se a própria delimitação entre aspectos físicos e metafísicos não poderia ser acusada, ela própria, de ser um expediente metafísico, posto que não haveria fundamentação exclusivamente física para elaborá-la.
Além dessa natureza precária de tal delimitação físico-metafísico, parece-nos que o expediente de lançamento desse argumento com tal nível de precariedade está mais relacionado à tentativa de interditar um determinado tipo de investigação ou de reflexão que possa levantar questões fundamentais à própria razão de ser de um campo[ii] ou paradigma[iii] hegemônico.
Como já afirmamos, não negamos a diferenciação entre fenômenos de natureza física e metafísica em seu sentido etimológico, posto que seguramente há fenômenos ao nosso redor que estão muito além da existência física, o que questionamos é sua linha demarcatória e seu caráter arbitrário e, mais do que isso, as consequências de tal delimitação, especialmente quanto à dignidade da reflexão que pode ser realizada a respeito daquilo que se põe como além do simplesmente físico. Não há, portanto, do que duvidar quanto à realidade de aspectos metafísicos atinentes ao ser humano, mas não só a este, em nossa realidade.
Quando estudos e pesquisas são realizados a respeito da natureza e estrutura do pensamento, como, por exemplo, quanto às formas lógicas da inteligência tais como investigadas por Piaget e Vygotsky, é forçoso reconhecer que se trata aí de questões relativas a fenômenos que não se reduzem ao aspecto físico; são obviamente atinentes ao ser humano, mas são fenômenos que estão além da realidade simplesmente física. O pensamento não é de natureza física, mas tem sido estudado e compreendido em sua estrutura aproximada, posto que ninguém poderia negar as formas do entendimento kantiano, ou a genealogia das estruturas cognitivas tal como analisadas por Jean Piaget. Poder-se-ia dizer que o pensamento já é captado fisicamente como tal por equipamentos eletrônicos que atestam a atividade reflexiva do cérebro. Embora esta seja uma área de pesquisa muito desenvolvida e em expansão no mundo – a neurociência – ainda não há evidência alguma de que tais experimentos captem fisicamente o pensamento, mas atestam tão somente os correlatos neurais da atividade da mente, o que não é pouca coisa, mas está longe de ser equivalente ao entendimento do pensamento como um fenômeno físico. Poderíamos pensar, ainda, na existência do inconsciente psíquico tal como Freud e diversos psicólogos o atestaram. Dificilmente alguém poderia, em sã consciência, negar a realidade de tal fenômeno; todavia, de igual forma, ninguém hoje se atreveria a afirmar a natureza físico-manipulável do inconsciente, sem que, nem por isso, tal fenômeno deixe de ser estudado, nem muito menos seja condenado como estudo metafísico indigno de assumir seu posto no âmbito das ciências. Poderíamos citar ainda manifestações da realidade como a esquizofrenia e o autismo, como aspectos relevantes da psique, ou, no âmbito da vida social, as significações imaginárias de cada época e estrutura social, tal como foram estudadas por Cornelius Castoriadis[iv], como fenômenos impossíveis de serem reduzidos a estruturas físicas e materiais, mas nem por isso menos relevantes para o funcionamento e existência das sociedades como são de fato. Nenhum desses fenômenos e estudos foi, entretanto, acusado de ser empreitada metafísica, a despeito de sua natureza claramente não poder ser reduzida ao âmbito físico. Por que, então, permanece a classificação e quase acusação retórica contra formulações específicas ou áreas determinadas de pesquisa, de serem “metafísicas”? Por que não se acusam os procedimentos e a clínica psicanalítica de serem metafísicos? Por que não se denunciam as narrativas dos pensamentos políticos comunista ou do livre mercado como elaborações metafísicas, embora se os denominem de metanarrativas? Por que não se acusa o ateísmo de princípio de vários pensadores como uma posição metafísica, uma vez que sabemos, desde Kant, da limitação da razão, quer para afirmar, quer para negar a existência de Deus? Por meio desses aspectos podemos perceber que nos encontramos diante de critérios seletivos para a classificação e condenação de algo como metafísico – alguns fenômenos que claramente possuem natureza ideacional, além da física, não são classificados como assuntos metafísicos, enquanto outros o são.
Na próxima coluna, tentaremos uma resposta provisória para o critério seletivo de classificação dos assuntos tidos como metafísicos no âmbito das humanidades.
[i] ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p.9.
[ii] Adotamos aqui o conceito de campo formulado por Pierre Bourdieu (BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001), para pôr em relevância o entendimento de que todo campo intelectual está dado por linhas de força que estabelecem uma hierarquia do que é ou não digno de reflexão de pesquisa. Temos, entretanto, pleno entendimento de que nosso conceito de ciência nem sempre coincide com o do renomado sociólogo francês.
[iii] Assumimos também a noção de paradigma tal como compreendida por Thomas Kuhn (KUHN, T. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 2012. e-book. ISBN: 978-0-226-45814-4) e igualmente por Alan Wallace (WALLACE, B. A. Dimensões escondidas: a unificação de física e consciência. São Paulo: Peirópolis, 2009). Tal compreensão evidencia que a ciência tal como praticada realmente não é um empreendimento que visa apenas à busca da verdade, mas, sim, estrutura-se conforme axiomas, preferências, princípios e entendimentos prévios admitidos majoritariamente pela comunidade científica, sem que aqueles tenham sido comprovados cientificamente em sua inteireza. Desse modo, parte não desprezível da própria ciência está assentada em ideias e princípios não científicos.
[iv] CASTORIADIS, C. A Instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
Entrevista com o Prof. Dr. Policarpo Junior – presidente do Instituto de Formação Humana sobre como as emoções influenciam a formação do ser humano.
Esta entrevista foi gravada em 2018.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do Portal Educação Emocional. O colunista convidado tem liberdade de expressão.
Neste espaço compartilhamos artigos, produtos, formações e ideias sobre como provomer a saúde emocional na escola.
Conheça mais sobre a nossa metododologia de formação de educadores socioemocionais que tem certificação reconhecida por uma instituição credenciada pelo mec – o processo educativo educação emocional integral
Leia artigos de professores de várias partes do brasil que já estão aplicando a metodologia em suas escolas e fazendo a diferença positivamente na vida dos seus estudantes